Crónica de Jorge C Ferreira | Os mundos

Jorge C Ferreira

Crónica de Jorge C Ferreira
Os mundos

 

Quando há um mundo que chega. Um mundo que pode ser uma mulher. Quando a mulher é inteira e vertical. Quando a vida parece nunca chegar. Quando a terra parece parar. Os minutos que passamos à espera do futuro. O futuro sem fim. Uma baleia que navega connosco. Um peixe voador. As escamas do amor. Amor feito e cantado. Amor desarmado. A vida desorbitada. A órbita desconhecida. A atracção da lua. Um amor que se quer colar a nós. Uma vida, a paixão, sem remissão. A dourada neblina. A visão das estrelas num céu especial. Há quem se lembre de um beijo. Um beijo único e irrepetível. Uma colina de Lisboa numa noite brilhante e enternecedora. A loucura de não saber quem somos e onde estamos. Ver um rio de água cristalina, despir a roupa e mergulhar. O corpo a ficar gelado. Alguém que vem aquecê-lo. Água doce e pedras decepadas.

Quando um corpo de mulher chega a um sem mundo. Quando esse sem mundo começa a ganhar vida e a vida a ter sentido. Quando todos os sentidos começam a explodir. Granadas de flores silvestres, que enfeitam louros cabelos e corpos desnudos. Quase um filme numa sala negra, imagens que desfilam por entre olhos fixos e muito abertos. Naqueles intervalos em que nos foyers dos cinemas se fumava. Tantas salas de cinema desaparecidas. O mundo a ficar descompensado. A avenida era só da liberdade no nome. Aqueles cabelos louros cheios de flores ainda não tinham chegado cá, eram invenções delirantes das nossas mentes desesperadas.

jcferreira livro

Havia a censura, a polícia política, os abjectos bufos, a tortura e os mortos. Tínhamos sobre a cabeça o cutelo das guerras coloniais. Víamos os filmes cortados. Os livros eram retirados do mercado, proibidos. Os jornais tinham de ir à revisão da comissão de censura. Quando o vespertino “A República” no dia 25 de Abril colocou na rua uma edição que trazia em rodapé:

“Este Jornal Não Foi Visado Por Qualquer Comissão De Censura”

Foi mais um passo, um passo enorme, no caminho começado no dia anterior. VIVA A LIBERDADE.

Quando uma criança chora pela primeira vez, quando o cordão umbilical é cortado e é colocada junto ao corpo da Mãe, há um calor especial que invade o mundo. Chegou alguém pronto a viver e a construir algo de novo. Cada criança é uma nova esperança. Uma nova caminhada. A concepção conseguida. Uma história que não morre. Um cordão que apesar de cortado se mantém ligado para sempre.

Minha história de loucura, minha louca tentação de reviver caminhos encantados. Minha caminhada imensa e já tão grande. Os amigos, os amores, vivos, mortos e adormecidos. As crianças e os peitos das mulheres onde os homens adoram adormecer. Minhas desatadas tentações, minhas ilusões. Meu bem, meu mal, meu caminho para a casa de partida. Jogos de mesa que joguei. Tabuleiros, pedras, dados e figuras. As pedras de lioz tampos de algumas mesas onde as cartas se batiam e o taberneiro fazia as contas.

Amores são sempre amores, raramente amores-perfeitos. O desgaste que gasta as vidas e as vidas que desgastam o amor. Os jogos de sedução. A sedução que se gasta em jogos ilusórios. A ilusão de ser sedução.

«Tu a jogares com as palavras e a brincar connosco.»

Fala da Isaurinda.

«As palavras, para mim, são uma tentação, inebriam-me e assim também se pode falar do mundo.»

Respondo.

«Podes ser mais directo e deixar-te de floreados.»

De novo Isaurinda, e vai, uma gargalhada tonitruante.

 

Jorge C Ferreira Novembro/2024(456)

 


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n. 1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor publicou as seguintes obras: A Volta à Vida à Volta do Mundo (Crónicas de Viagem) Editora Poética (2019) Desaguo numa Imensa Sombra (Poesia) Editora Poética (2020) 60 Poemas mais um (Poesia) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.I) Editora Poética (2022) O Mundo E Um Pássaro (Crónicas Vol.II) Editora Poética (2024) Participação em Antologias: A Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence (Poesia) Antologia Luso-Francófona Editora Mosaico das Palavras (2018) Poetas do Reencontro (Poesia) Antologia Galaico-Lusa Editora Punto Rojo (2019) A Norte do Futuro (Poesia) Homenagem poética a Paul Celan Editora Poética (2020) Sou Tu Quando Sou Eu Homenagem À Amizade (Poesia) Editora Poética (2021) Água Silêncio e Sede Homenagem Poética a Maria Judite Carvalho (Poesia) Editora Poética (2021) Ser Mulher IV As Palavras (Poesia) Editora Mosaico das Palavras (2021) Nem Sempre Os Pinheiros São Verdes II Editora Poética (2022) Representado na Revista Pauta nº9 com um Poema (2022)

Pode ler (aqui) todas as crónicas de Jorge C Ferreira


Partilhe o Artigo

Leia também

5 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Os mundos”

  1. Maria Luiza Caetano Caetano

    Que mundo lindo, por si imaginado, um sem fim de palavras lindas, que brotaram livremente do seu doce imaginário. Que bem conseguida a ligação, com tudo o que já viveu, um filme maravilhoso. Seria um prazer vê-lo, nessas salas escuras inesquecíveis. Já na liberdade que tantos desejavam. Que história linda, dava a sua sedutora caminhada. Como foi lindo o que li, recuei no tempo e foi bom. Mestre das palavras lindas e só suas, continue a inebriar-se com elas, meu poeta amigo.
    Abraço grande.

  2. Eulália Coutinho Pereira

    Belíssima crônica! Jogo de palavras para falar do mundo, como só os poetas sabem. Cada palavra envolvida em poesia. A caminhada da vida. A memória da avenida, que só de nome era Liberdade. . Os livros proibidos. A musica escondida, o peso da guerra.
    O tão esperado dia da Liberdade. A loucura da juventude, os sonhos , os risos, os abraços , o céu azul, a esperança. A vida a acontecer.
    Tantos anos passaram . O céu ficou cinzento. Tantas nuvens a pairar sobre nós.
    Caminhada imensa, com amores e desamores.
    Obrigada Amigo, por estar desse lado. Grande privilégio poder ler a sua escrita única!

  3. Filomena Geraldes

    cimentas a minha tarde
    com esta crónica.
    sacias-te de mundo
    segues corpos desnudos
    memorizas o paladar ao
    beijo
    o sal às ondas das marés
    gemidos às esquinas do
    corpo
    detalhes de uma qualquer
    longitude
    efemérides pelas avenidas
    subindo até à liberdade
    os gestos que não cabem
    nas mãos
    a surpresa bendita de uma
    nova vida
    o luto que traz a noite. negro.
    não amaldiçoar as sombras
    antes invocar os poemas
    ditos.
    ser o antes e o depois e…
    o então?
    ir até ao beco da saudade
    despertar com o bafo
    da casa fria.
    acrescentar heras aos
    muros
    ser o sol que tatua o
    peito
    entrar devagarinho
    na dor que pousa nas
    palavras
    abreviar. o sono.
    sonhos bordados…
    esse é o teu eu.
    um livro aberto
    o canto das cigarras
    o côncavo da cama
    os pensamentos em
    voos sem poiso
    os corpos das letras
    um vai e vem de nomes
    e demais continentes
    uma profecia tirada
    a ferros
    as tuas pátrias tantas
    um novo paladar de beijo
    o silêncio dos poemas
    um só jardim. teu.
    as adivinhas do mundo.
    celeiros. uns cheios
    outros vazios.
    sem cordéis de miragens.
    os retratos anónimos
    o teu fruto maduro
    o rascunho o esboço
    o manuscrito
    a tinta. permanente.
    não precisas assinar
    esse é o teu eu.

  4. Branca Maria Ruas

    Maravilhosa retrospectiva dos tempos vividos pela nossa geração!
    Uma excelente síntese poética da transição dos tempos da ditadura para a Liberdade! E não só,,,porque a tua escrita não vive confinada a um tema. É livre e solta! As palavras, nas tuas mãos, criam asas e conduzem-nos, não só a memórias, mas ao sonho.
    Obrigada por isso!
    Um terno abraço com Amizade.

  5. José Luís Outono

    Caríssimo amigo !
    Momentos que me trouxeram variantes do meu calcorrear, e ditaram um sossego aconchegante face ao teu criar excelente de agendas marcantes!
    Momentos … ontem gritos de Liberdade … hoje hesitações de entendimentos e questões preocupantes.
    Tocaste-me e agradeço-te o teu criar ímpar sempre merecedor de leituras compassadas, face ao teu original “ditar” de mestre escritor.
    Grande abraço !!!!

Deixe um Comentário